Prolegomeno necessario ao leitor, e indicativo de toda a óbra.

Índice da Orthographia

Prolegomeno necessario ao leitor, e indicativo de toda a óbra [*3]
Terceira parte [*5]
Advertencia [*6]

Orthographia Explicada ou Arte de Escrever,
e Pronunciar com acerto a Lingua Portugueza

Difficuldade, e Introducçaõ da Obra [1]
Se devemos imitar na Orthografia das letras a pronunciaçaõ das palavras? [2]
Se na Orthografia devemos imitar os Auctores Portuguezes? [3]
Se na Ortografia nos devemos conformar com o uso da pronunciaçaõ? [5]
Se havemos de imitar a Orthografia Latina na Orthografia Portugueza? [6]
Se escreve como pronuncia, quem imita a Orthografia latina? [8]
Inconvenientes, que se seguem, de naõ imitar a Orthografia latina [9]
Parecer do Auctor, e disposiçaõ da obra [11]
Explicaçaõ dos Tons, ou Accentos para o acerto da pronunciaçaõ [12]
Que cousa he Accento Agudo? [13]
Que cousa he Accento Grave? [13]
Que cousa he Accento Circumflexo? [14]
Uso dos Accentos para a lingua Portugueza [14]
Diversa pronunciaçaõ da vogal O, e os seus accentos [16]
Uso do Viraccento [17]

Orthografia explicada. Primeyra parte.

Que cousa he orthografia, como se divide, e com que letras se haõ de escrever as palavras [19]
Que cousa he Orthografia? [19]
Em quantas partes se divide a Orthografia? [19]
Das letras, com que se ham de escrever as palavras [20]
Quantas saõ as letras, e como se dividem [20]
Da pronunciaçaõ das vogaes, e dos dithongos, que dellas se fazem na nossa lingua [21]
Dithongos das Vogaes [22]
Dithongos de Aa, Ae, Ay, Ai, Ao [22]
Dithongo de Ea, Ee [23]
Dithongo de Eo, Ey, Ei, Eu [24]
Dithongo de Io [24]
Dithongo de Oe [25]
Dithongo de Oy, e Oi [25]
Algumas regras geraes das letras, com que se haõ de escrever as palavras [26]
I. Como se ha de imitar na Orthografia das letras a pronunciaçaõ das palavras [26]
II. Que palavras se haõ de escrever com letra grande? [27]
III. Das letras, que nunca se escrevem dobradas [30]
IV. Quando se haõ de dobrar as consoantes no meyo das palavras? [32]
V. Como se haõ de escrever as palavras compostas [33]
Uso das Preposiçoens na composiçaõ Latina, e Portugueza [34]
VI. Como se haõ de escrever as palavras derivadas [37]
VII. Das palavras, que se haõ de escrever por analogia, ou similhança [38]
VIII. Das palavras, que se haõ de escrever por Etymologia [39]
Com que letras consoantes se haõ de escrever as palavras [41]
Liçam I. Da Letra B [41]
Liçam II. Das palavras, que se escrevem com B dobrado [43]
Das palavras que acabaõ em B [43]
Liçam III. Da letra C [43]
Liçam IV. Da differença que ha entre a pronunciaçaõ da letra C, e da letra S [44]
Liçam V. Quando havemos de escrever C, ou S [45]
Liçam VI. Das palavras, que devem principiar por Ça, Ce, Ci, Ço, Çu [46]
Quando se ha de escrever Ca, Co, Cu com som de K, ou Q [50]
Das palavras, que se haõ de escrever com dous Cc [51]
Das palavras, que se haõ de escrever com Ch [52]
Das palavras, que se haõ de escrever com ct [56]
Das palavras acabadas em C [59]
Liçam VII. Da letra D [59]
Das palavras, que se escrevem com dous dd [60]
Das palavras acabadas em d [60]
Liçam VIII. Da letra F [60]
Se havemos de usar de Ph em lugar de F? [61]
Das palavras, que se haõ de escrever com dous ff [63]
Liçam IX. Da Letra G [65]
Das palavras, que se haõ de escrever com G, ou J consoante [66]
Das palavras, que acabaõ em Gem, ou em Jem [66]
Quando se ha de escrever Ga, Go, Gu, ou Gua, Gue, Gui, Guo, Guu? [67]
Das palavras, que se escrevem com dous gg [68]
Das palavras, que se escrevem com Gm, e Gn [68]
Das palavras acabadas em G [69]
Liçam X. Do H [69]
Das palavras, que principiaõ por H [70]
Das palavras, que se escrevem mais com H [72]
Das palavras, que acabaõ em H [73]
Liçam XI. Do J consoante [73]
Liçam XII. Da letra K [74]
Liçam XIII. Da letra L [75]
Das palavras, que se escrevem com dous ll [75]
Advertencia [79]
Segunda advertencia Pela, e Pelo [79]
Terceira advertencia La, Lo final [80]
Das palavras acabadas em L [81]
Liçam XIV. Da letra M [81]
Das palavras, que sempre se escrevem com M [81]
Das palavras, que se escrevem com am, ou aõ [82]
Das palavras acabadas em em [83]
Como se ha de pronunciar a palavra Huma [83]
Das palavras, que se escrevem com dous mm [84]
Das palavras, que se escrevem com mn [85]
Liçam XV. Da letra N [85]
Das palavras, que se escrevem com dous nn [86]
Liçam XVI. Da letra P [86]
Das palavras, que se escrevem com Pç [87]
Das palavras, que se escrevem com dous Pp [87]
Das palavras, que se escrevem com Pt [88]
Liçam XVII. Da letra Q [89]
Das palavras, que principiaõ por Qua, e Quo [91]
Liçam XVIII. Da letra R [91]
Do R no principio das palavras [92]
Do R. entre duas vogaes [92]
Das palavras, que se escrevem com dous Rr [92]
Do R depois de consoantes [93]
Excepçaõ [93]
Do R antes das consoantes, e no fim das palavras [94]
Liçam IX. Da letra S [94]
Das palavras, em que se escreve S, e se pronuncía como Z [95]
Das palavras, que se escrevem com dous Ss [95]
Liçam XX. Da letra T [98]
Das palavras Latinas, em que se ha de pronunciar o T como C [98]
Das palavras, que se haõ de escrever com T aspirado com H [99]
Das palavras, que se escrevem com dous Tt [100]
Liçam XXI. Do V. consoante [101]
Liçam XXII. Da letra X [101]
Liçam XXIII. Da letra Y [102]
Em que palavras havemos de usar de Y [104]
Mãy, e Silva [107]
Das palavras, que principiaõ por Y, e das que acabaõ nelle [108]
Liçam XXIV. Da letra Z [108]
Das palavras, que principiaõ por Z [108]
Das palavras, que se escrevem com Z intermedio [109]
Das palavras, que acabam em Z [112]
Liçam XXV. Uso do Til [114]
Das letras, que suppre o Til [114]
Advertencia [115]
De outras letras, que suppre o til [116]
Liçam ultima. Como se escrevem,
e pronunciaõ os nomes Portuguezes no plural [116]
Dos nomes, que no plural acabaõ em aës, aõs, e oës [117]
Dos nomes, que no plural acabaõ em aës, ais, e ays [118]
Dos nomes, que no plural acabaõ em ares, eres, ires, ores, e ures [118]
Dos nomes, que no plural acabaõ em eis, ens, ins, is [118]
Dos que acabaõ em oes, ons, os, ues, e us [119]
Dos nomes acabados em azes, ezes, izes, ozes, e uzes [120]

Segunda parte da orthografia

Divisão das palavras, e pontuação [121]
Como se dividem as palavras, quando naõ cabem no fim das regras [122]
Da pontuaçam: Quando, e como havemos de escrever virgula; ponto, e virgula;
dous pontos; ponto e interrogaçaõ; ponto e admiraçaõ; ponto final [124]
De outros sinaes, ou notas, que se usaõ na escripta [127]
Parágrapho [127]
Parenthesis the breve [128]
Ângulo [128]
Ápices [129]
Asterisco [129]
Branchîa [129]
Semicirculo, Conjunçaõ, e Desuniaõ [130]
Appendiz: De algumas Abbreviaturas, Conta dos Romanos, e Latinos [131]
Abbreviatura do Sanctissimo Nome JESUS, e Christo [132]
De outros Breves [133]
Conta dos Romanos pelas letras [134]
Outros modos de contar na lingua Latina [137]
Conta dos Latinos pelos nomes ordinaes, distributivos, e adverbios [137]
Como se contaõ os dias dos Mezes por Calendas, Nonas, e Idus [139]

Terceira parte. Erros do vulgo, e emendas da Orthografia

No Escrever, e Pronunciar [143]
Advertencia necessaria para a Pronunciaçaõ [145]
Segunda advertencia muito necessaria para a recta pronunciaçaõ [146]
Dithongos [148]
Advertencia necessaria para a conjugaçaõ dos verbos [149]
Modos [150]
Tempos [150]
Pessoas, e Números [152]
Divisaõ dos Verbos, e Conjugaçoens [152]
Conjugaçoens dos verbos [156]
Advertência [160]
Ultima advertência [161]
Erros communs da pronunciaçam do vulgo, com as suas emendas em cada letra [163]
Breve instrucçam para os mestres das Eschólas de Lêr, e Escrevêr [547]
Como se haõ de evitar outros erros [549]
Abecedarios para aprender a ler com acerto [550]
Advertencia para o uso de outras letras [552]

Prolegómeno e introdução

Prolegomeno necessario ao leitor, e indicativo de toda a óbra.

LEITOR sábio, e entendido, isto naõ he prólogo, para antecipar satisfaçoens á crîtica dos Zoilos; porque depois que o doutissimo Bluteau fez prólogos para todo o genero de Leitores, todos os mais ficaõ escusados para confusaõ da mordacidade, na crîtica. He sim hum Prolegómeno, ou prepáro necessario a todo o Leitôr deste livro, para a comprehensaõ de toda a obra, sem o trabalho de a lêr; de que conseguirás o conhecimento, ou da sua utilidade para a estimaçaõ, ou da sua inutilidade para o desprezo; porque naõ he justo que te enganes com a vista do frontispîcio, ou fachada do titulo; como muitas vezes succede nos Templos, e naõ poucas nos livros.
Aqui pois tens duas Orthografias, para a eleiçaõ da que te parecer mais facil, quando julgues, que ambas naõ saõ necessárias. A primeira he a que se reduz áquellas poucas régras, e menos preceitos, de que consta esta Arte; que principiei pelas difficuldades, que encontra, quem escréve de similhante matéria, para que saibas, que para mim he chimérica aquella Orthografia universal, em que muitos fállaõ; porque naõ póde ter mais possibilidade para se pôr em praxe, que a imaginaçaõ daquelles, que a facilitaõ In voce, e naõ o estudo, a experiencia, e o trabalho daquelles, que muitas vezes a examináraõ, sem nunca lhe acharem fundamentos para regras universáes, e infalliveis como poderás inferir do que digo nas mesmas difficuldades da introducçaõ, e no preludio da Terceira Parte p. 144 n. 2, e nos seguintes.
As unicas regras, que ha, e pódem ser universáes, saõ as que [*4] acharás na Primeira Parte desta obra com toda a clareza, e extensaõ necessaria. Naõ me cansei em descrever aqui, que orîgem tivéraõ as letras, quem foraõ os seus inventôres, como principiáraõ no uso, e com que caractéres se começou a escrever no mundo: nem examinar os primeiros rudimentos da lingua Portugueza, o seu augmento, a sua singularidade, e differença das mais; porque além, destas noticias andarem já em outras Orthografias, e serem mais históricas que doutrinaes, todo o fim do incansavel estudo, que fiz nesta matéria, foi só tirar o necessario para a utilidade dos leitores, e naõ aproveitar tudo para a recommendaçaõ do Auctôr.
Por isso antecipei ás regras das letras o uso dos accentos, porque mal póde aprender a escrever sem erro, quem primeiro naõ souber ler com acêrto; e como o ler inclue a pronunciaçaõ, ou seja vocal, ou mental, naõ pode haver pronunciaçaõ récta, sem a intelligência, e uso dos accentos, que saõ os sons, ou tons, com que se pronunciaõ as palavras, já levantando, e já deprimindo a voz em cada hüa das vogáes, com que as palavras se escrévem. E quem passar a ler a diante, sem saber primeiro o uso dos accentos, vay exposto a errar muitas vezes a bõa pronunciaçaõ; porque só por elles ensino a pronunciar, como se verá do numero 40 por diante.
Segue-se logo a pronunciaçaõ de cada hüa das vogáes, os dithongos, que dellas se fazem na nossa lingua, e o seu differente uso. Que palavras se haõ de escrever com letras grandes. Como se escrévem as palavras compostas. O uso das preposiçoens, assim no Portuguez, como no Latim. De cada hüa das consoantes, e quando se haõ de escrever dobradas; e aqui acharás, além do preceito, todas as palavras, que dóbraõ letra, dispostas pelo abecedário para uso facîllimo. Do mesmo modo vaõ alfabetadas todas as que tem orthografia especial, como as que se escrévem com ct, mn, pt &c. As terminaçoens dos nomes no plural; e he tudo o que contém a Primeira Parte.
Na segunda acharás como se deve fazer a perfeita divisaõ das palavras, que naõ cábem inteiras no fim das regras. O uso da pontuaçaõ na divisaõ das oraçoens por vîrgulas, e pontos &c. Hum bréve Appendice de algumas abbreviaturas, conta dos Romanos pelas letras, todos os modos de contar na lingua Latina; [*5] e como se contaõ os dias dos mezes por Calendas, Nonas, e Idos. E he athe onde se extendem todas as Orthografias: e sendo esta a mais amplificada entre as outras, que me viéraõ á maõ, vi que naõ excedia o volûme de tres quadérnos de papel, e só por isso merecerîa o nome de Arte: Ars quia Arctè docet. Mas reflectindo com mais attençaõ nos preceitos desta Orthografia, entrei a considerar, se bastarîaõ elles, para sabermos escrever, e pronunciar com acerto todas, ou ao menos as principáes palavras da nossa lingua Portugueza? E achei, que naõ; porque nem esta, nem outra algüa nos dá regras para acertar na variedade, e mudança, que na sua conjugaçaõ tem os verbos anômalos, e irregulares, de que abunda a nossa lingua. Nenhüa diz como se tira a dúvida em innumeraveis palavras, que saõ controversas naõ só nas letras, com que se escrévem, mas nos tons, ou accentos, com que se pronuncîaõ. E nenhüa ensina como se devem emendar os erros vulgáres da pronunciaçaõ commua; e por isso me resolvi a continuar com a Terceira Parte.

Terceira Parte.

Intitula-se a Terceira Parte erros do vulgo, e emendas da Orthografîa no escrever, e pronunciar. E bem lhe pódes chamar hum Thesouro, ou Vocabulário Orthográphico da lingua Portugueza; porque só neste acharás o como se escrévem, e como se pronuncîaõ todos os vocábulos da nossa lingua, que poderîaõ causar dúvida, ou nas letras, ou na pronunciaçaõ. Só neste acharás os erros oppostos, para os conhecer por táes, ainda quando se encontraõ em alguns Auctores. Só neste acharás examinado o que em hüas palavras he uso, e em outras abuso, a conjugaçaõ, e declinaçaõ dos verbos anômalos, e irregulares, e cada hum na letra, a que pertence: o exame das palavras controversas, e a que déve prevalecer. E por isso bem pódes chamar a esta Terceira Parte segunda Orthografia; porque toda a palavra, em que tiveres duvida de como se escreve, ou como se pronuncîa, acharás no seu lugar pela ordem do Alfabéto. Nem eu sei, que de outro modo se possa fazer, ou inventar hüa Orthografîa universal para toda a lingua Portugueza. Só me pódes estranhar, que as significaçoens, que ajunto a todas as palavras, que necessitaõ dellas, naõ [*6] pertencem á Orthografia, e que essas tinhas tu em Bluteau. Respondo, que tens razaõ, porque daqui se segue, que se eu naõ tivéra o excessivo trabalho do que estranhas, naõ terîas tu o allîvio de saber como se escréve, e pronuncia esta, e aquella palavra, mas ficarias ignorando o que significa, ou irias buscarlhe a significaçaõ a Bluteau; e quem naõ tiver aquelles dez Vocabularios, ficará tambem ignorando as significaçoens de dez mil palavras, que dos Gregos, e dos Latinos passáraõ, e vaõ passando para o nosso uso. Eu entendia, que me devias agradecer, e naõ estranhar, o acháres neste pequêno volûme de quarto aquelles dez de fólio, para o estudo, e uso de hüa banca, e naõ para o ornato, e pezo de hüa livrarîa. Ora estranha o que quizeres, com tanto, que te aproveites della, para naõ vermos entre nós a muitos homens aliundé Letrados, que naõ sabem pôr hüa letra no seu lugar.

Advertencia.

So quéro, que todo o Leitôr advirta, que no tempo, em que compuz a Primeira, e Segunda Parte, ainda me naõ vinha ao pensamento a Terceira pelo methodo, com que vay disposta; e por isso me hia accomodando ao uso commum dos nossos Auctores, sem a rigorosa observaçaõ dos accentos para a pronunciaçaõ, e sem aquelle particular exame, com que a fui apurando. Pelo que toda a palavra, que se achar na Primeira, e Segunda Parte, e causar duvida, vejase na Terceira, aonde pertencer, que lá se acharâõ todas segunda vez para a emenda, e significaçaõ.

Vale.

[1]

ORTHOGRAPHIA EXPLICADA,

ou Arte de escrever, e pronunciar com acerto
a Lingua Portugueza

Difficuldade, e Introducçaõ da Obra.

1 Orthographîa, ou Orthografia he aquella Arte, que ensina a escrever com acerto nas letras, de que se compõem as dicçoens; na divisaõ, que se faz das palavras, quando naõ cabem inteiras no fim das regras; nos pontos, e virgulas, com que se divide o sentido das oraçoens; nos accentos, ou tons, com que se pronunciaõ as vogaes em cada palavra.
2 Mas sendo muitas as Orthografias, que tem sahido a luz, e nos ensinaõ regras para os accentos, para a pontuaçaõ, e divisaõ, que se reduzem a preceitos certos; ainda naõ sahio huma, que nos ensinasse a escrever com certeza as letras, de que se devem compor as dicçoens, ou palavras na nossa lingua Portugueza; porque ja nos dizem, que devemos observar a analogia, e etymologia das palavras, imitando nas letras aquellas, donde tiverem a sua origem; ou aquellas com que tiverem sua proporçaõ; e similhança; como em seu lugar explicaremos. Mas logo se desviaõ destas regras [2] em muitas palavras, que naõ escrevem, nem por analogia, nem por etymologia; dizendo, que assim escrevem os doutos na nossa lingua. Já nos dizem, que a melhor Orthografia he aquella, que mais se accomoda com a recta pronunciaçaõ das palavras. Mas porque aqui começaõ as difficuldades desta obra, para as conhecermos melhor, pergunto:

Se devemos imitar na Orthografia das letras a pronunciaçaõ das
palavras?

3 Todos dizem, que devemos escrever como pronunciamos; mas nenhum ensina como devemos pronunciar, para assim escrevermos. Quem naõ sabe, que toda a causa de innumeraveis erros na Orthografia, he a multidaõ dos erros, que andaõ introduzidos na pronunciaçaõ? E eu dissera, que mais facil he escrever com acerto, do que pronunciar sem erro; porque na Orthografia poderiamos imitar aos melhores Auctores, que escreveraõ na nossa lingua; porque vemos como elles escreviaõ: mas na pronunciaçaõ naõ os podemos imitar; porque naõ sabemos como elles pronunciavaõ. Esta queixa faziaõ ja os antigos Grammaticos no seu tempo, dizendo: que tinhaõ as oraçoens de Cicero para aprenderem a compor, e escrever como elle; mas que naõ tiveraõ a fortuna de o ouvirem orar, para saberem como elle pronunciava a lingua latina.
4 E daqui infiro eu, que se na lingua latina naõ bastava a boa Orthografia das palavras, para a sua recta pronunciaçaõ; em nenhuma lingua se pòde regular com acerto, pela pronunciaçaõ das palavras a Orthografia das letras; porque nunca na pronunciaçaõ se exprimem com som distincto todas as letras, com que muitas palavras se escrevem: senaõ digamme: quem ouve pronunciar Aggravar, Aggravo, como ha de saber pelo tom da pronunciaçaõ se tem hum, ou dous gg? Em affecto, se tem hum, ou dous ff, em Massa se he ç, ou dous ss; em Rapaz, se a ultima letra he z, ou s? Em Honra, se principia por h, ou naõ? Responderám, que para estas duvidas temos a liçaõ dos Auctores. E eu pergunto:

[3]

Se na Orthografia devemos imitar os Auctores Portuguezes?

5 Por Auctores Portuguezes, ou havemos de entender os Historicos, e Oradores, que compuseraõ na nossa lingua; ou os Orthografos, que nos deraõ regras para a escrever. Huns, e outros bem podiaõ servirnos de exemplares para a imitaçaõ, se nos seus livros naõ achassemos huma notavel variedade para o desacerto. Mas a isto dirám os Historicos, que a sua obrigaçaõ era examinar successos, combinar tempos, e narrar verdades, para naõ faltar á inteireza da historia; e naõ observar letras para escrever palavras. Os Oradores, ou Prégadores poderám dizer, que o seu estudo foi inventar assumptos, excogitar provas, compôr discursos, e naõ Orthografias; e que escreviaõ ou por habîto, e costume; ou pela liçaõ que tinhaõ dos nossos Orthografos daquelle tempo; e por isso huns escrevêraõ, e pronunciáraõ Leziras, outros Lesirias: outros Lysirias, e, outros Lisiras. Huns Pintacilgo: outros Pintasilgo; outros Pintasirgo, e outros Pintaxilgo. Huns Porcelana: outros Porçolana; outros Porselana, e outros Porsolana: E assim em outras muitas palavras, em que a sua variedade nos deixou na duvida de qual havemos de seguir.
6 Outros Auctores ha, cuja Orthografia devia ser a mais correcta, porque tinhaõ obrigaçaõ de a indagar. Saõ estes os Auctores dos vocabularios Portuguezes, como os dous insignes doutores o P. Bento Pereyra no seu Thesouro, e o P. D. Rafael Bluteau nos seus oito admiraveis tomos da lingua Portugueza. Mas naõ saõ poucas as palavras, que hum escreve por muito differente Orthografia do que o outro, como estas, que o primeiro escreve Çapato, Çapateiro &c. conforme o verdadeiro som da nossa pronunciaçaõ de ç, e naõ de s. O segundo escreve Sapato, Sapateiro contra a nossa pronunciaçaõ pelo motivo de evitar a duvida das que se escrevem com ça, ou com sa; a que responderemos na letra C. E sendo este Auctor o ultimo que escreveo na materia, teve razaõ para mais apurar o exame das palavras Portuguezas, como doutamente faz, ensinandonos nas mais dellas a sua propria significaçaõ, a sua origem, e analogia: mas elle mesmo se queixa das muitas que se imprimiraõ alheyas do seu original, ou por culpa [4] do amanuense, ou por erro da imprensa, ou por descuido dos correctores; porque no mesmo paragrafo se acha muitas vezes a mesma palavra escripta de tres differentes modos, sem a conjunçaõ ou, com que em muitas dá a entender que se pode escrever ou huma, ou outra.
7 Quanto aos Orthografos, que ja nos ensináraõ as regras desta arte, de tres, que li, nenhum deve ser imitado, naõ só porque escrevêraõ em tempo, em que a nossa lingua estava menos apurada, e por isso as suas regras senaõ conformaõ ja com a melhor pronunciaçaõ; mas porque huns contradizem aos outros, e athe a si mesmos se contradizem. Duarte Nunes de Leaõ segue tanto a regra das analogias, que escreve Docto, Doctor, Doctrina, Pecto &c. porque no Latim se escrevem, Doctus, Doctor, Doctrina, Pectus &c. E naõ advertio este Auctor, que nas palavras traduzidas, e derivadas, ainda os mesmos Latinos costumaõ diminuir, ou acrescentar, ou trocar alguma letra, ou para evitarem a má consonancia das palavras, ou para fazerem mais facil, e suave a pronunciaçaõ.
8 Joaõ Franco Barreto ja segue, e ja deixa as analogîas, e as origens; porque escreve Calidade, Calificador, Cantidade, Semelhante, Semelhança, e outras; sem reparar que as palavras latinas, donde estas nascem, se escrevem: Qualitas, Quantitas, Similis, Similitude &c. e por isso no Portuguez se devem escrever Qualidade, Qualificador, Quantidade, Quantitativo, Similhante, Similhança &c. E se perguntassemos a este Orthografo, porque manda escrever, Quaresma, Quarenta, e Quanto com Q; e naõ Caresma, Carenta, e Canto, como alguns erradamente escrevem, responderia, porque no Latim se escreve Quadragesima, Quadraginta, Quantum. Pois porque naõ ha de ser esta a mesma razaõ, para escrevermos, e pronunciarmos Qualidade, Qualificador, Quantidade, Similhança &c. imitando a origem latina, quando no Portuguez a consonancia, e pronunciaçaõ he bóa? [4-6]
9 O R. P. Bento Pereyra diz, que na duvida das letras, com que se haõ de escrever algumas palavras, recorreremos á lingua latina seguindo a regra das analogias, ou similhanças. E tendo escripto na sua Prosodia Çujidade, e Çujo com Ç, na sua Arte da lingua Portugueza diz, que escreveremos Sujidade, Sujo com S, pela analogia, que tem com a palavra latina Sordes. Eu naõ sei [5] como este Orthografo naõ advertio no diverso som, com que pronunciamos o c, e o s; e que o som do s, he contra a nossa pronunciaçaõ nas palavras Sujidade, Sujo. Nem obsta dizer elle, que estas palavras de algum modo trazem a sua origem da latina Sordes; porque naõ basta huma letra para haver analogia, ou proporçaõ, ou similhança de huma palavra com outra, mas he necessaria ao menos huma syllaba, e esta naõ se acha em Sujidade, e Sujo, comparadas com Sordes: as palavras analogicas de Sordes saõ Sordidez, e Sordido. Mas aqui dirá o Leitor, que nas palavras dubias, que naõ tem analogia, ou etymologia seguiremos o uso; e eu pergunto:

Se na Orthografia nos devemos conformar com o uso da pronunciaçaõ?

10 He sem duvida, que o uso muitas vezes prevalece contra algumas regras particulares, e passa a ser ley na materia, em que he uso. Mas este he aquele uso geralmente introduzido, e com algum fundamento, sem contrariedade dos prudentes; porque o mais he abuso. E eu tomara saber qual he o uso universal na pronunciaçaõ da nossa lingua, para me naõ desviar delle: se consultarmos o vulgo naõ acharemos senaõ abusos de palavras, e erros da pronunciaçaõ. Se consultarmos os sabios, estes saõ os que mais duvidaõ da pronunciaçaõ, e escripta de innumeraveis palavras, como elles confessaõ, porque a mesma sabedoria os faz prudentemente duvidar. Se consultarmos as Provincias, acharemos, que o uso introduzio em cada huma aquelles erros patrios, que os naturaes mutuamente reprovaõ huns aos outros, ou seja no escrever, ou no fallar. Se consultarmos os livros, nelles encontraremos o que ja a cima se advertio: logo onde vay aqui o uso universal, e constante, para ser ley inviolavel da pronunciaçaõ, ou regra infallivel da Orthografia?
11 E como pode haver uso universal de fallar com acerto, se os idiomas cada dia se vaõ mudando, emendando, e aperfeiçoando tanto, que se compararmos naõ só a nossa lingua, mas a Castelhana, e outras no auge, em que hoje estaõ, com o que eraõ antigamente, e ainda ha poucos annos, veremos que senaõ parecem humas com outras: e he o que ja no seu tempo advertio Horacio, [6] que as palavras saõ como as folhas das arvores, que cada anno se mudaõ acabando humas, e nascendo outras, que pela novidade tem mais vigor, quaes os mancebos na flor dos annos:

Ut silvae foliis pronos mutantur in annos, Prima cadunt, ita verborum vetus interit aetas; Et juvenum ritu florent modo nata, vigentque.

12 Eu bem sei, que naõ he pequena a difficuldade de querer alguem introduzir novas palavras, e lançar fora as antigas, que o uso, e habito de cada hum as fez indeleveis a toda a razaõ: mas como seria possivel aperfeiçoar a nossa lingua, que principiou taõ tosca, se naõ emendassemos humas palavras, e reprovassemos outras a pezar do uso, e da antiguidade, que na materia da locuçaõ naõ pode ser oraculo, como o naõ foi para os Latinos, que sendo a sua lingua a mais perfeita, sempre a foraõ emendando na Orthografia; porque os antigos escreveraõ, e pronunciaraõ por muitos tempos Vorsus, Voster, Vulgos, Servos, Clostra, Plodo, Dignu, Mertare, Casmoenoe, Sâ, Sâs &c. que depois emendaraõ, e mudaraõ em Versus, Vester, Vulgus, Servus, Claustra, Plaudo, Dignus, Mersare, Camoenoe, Sua, Suas &c.
13 E quem duvida, que se algum novo Auctor quizesse emendar aquelles antigos Latinos no seu tempo, seria censurado de ignorante, por ir contra o uso, e costume, que elles tinhaõ de escrever, e pronunciar assim. Mas se hoje fossem vivos, conheceriam sem paixaõ, que os ultimos escreveraõ, e pronunciaraõ tanto melhor, que athe hoje ainda naõ houve quem os reprovasse: e por isso sem receyo da censura, naõ deixarei de reprovar o abuso de muytas palavras, a que alguns chamaõ uso; mas tambem approvarei este na quellas em que tem prevalecido pela aceitaçaõ commua dos mais doutos. E para acabarmos de mostrar toda a difficuldade nesta materia, so falta perguntar: [6-8]

Se havemos de imitar a Orthografia Latina na Orthografia Portugueza?

14 Todos os nossos Auctores confessaõ, e devem confessar todos aquelles, que professáraõ a latinidade, que a nossa língua he [7] filha da língua latina. E se perguntarmos em que? Ou porque? Respondem, que na similhança dos nomes, na imitaçaõ dos verbos, e na propriedade dos vocabulos. E eu accrescento, que o naõ he menos no som da perfeita pronunciaçaõ; tanto, que ja houve curiosos, que compuseraõ poemas inteiros, que com pouca mudança da pronunciaçaõ, ja se lem em Portuguez, e ja se lem em Latim.
15 Dizem tambem, que a nossa lingua vay subindo ao auge da perfeiçaõ: e se examinarmos donde lhe nascem estes augmentos, diraõ, que he, porque esta filha cada dia se vay enriquecendo com a herança das palavras, que cada vez mais participa daquella mãy. O certo he, que as prosas, e poesias Portuguezas, que a fama canta, e todos applaudem por singulares na locuçaõ, saõ aquellas que estaõ mais cheyas de palavras latinas reduzidas com pouca differença á pronunciaçaõ Portugueza, quaes saõ os adjectivos, com que se elevaõ os periodos, e se ornaõ as oraçoens; como v. g. este Abc de alguns.
16 Augusto, arduo, ardente. Benefico, benigno, benevolo. Casto, castissimo, constante. Diffuso, disperso, diverso. Excellente, excellentissimo, extremo. Fluido, fugitivo, fluctuante. Generoso, gentil, gracioso. Heroico, honorifico, honesto. Inclito, illustre, illustrissimo. Lucente, lucido, lustroso. Magno, magnifico, malevolo. Nobilissimo, nimio, nitîdo. Optimo, obsequioso, obtuso. Preclaro, precioso, preterido. Quantitativo, quindenio, quanto. Regio, regnante, ruidoso. Sapientissimo, sublime, supremo. Tenacissimo, tenaz, tenebroso. Veridico, veloz, volante. Xantho. Zenith, zodiaco, zoilo &c.
17 Destas, e similhantes palavras ha huma multidaõ sem numero, que cada dia estamos vertendo do latim em Portuguez, sem mais differença, que acabarem em o, as que no latim acabaõ em us, como sabe qualquer latino: e esta he tambem a differença que ha na pronunciaçaõ, que nas mais syllabas he a mesma.
18 Deixo de referir os muitos verbos, as preposiçoens, e adverbios da nossa lingua, que tem identidade com a latina; porque o meu empenho naõ he mostrar a grande abundancia de vocabulos que a nossa lingua tem herdado como filha, da latina como mãy, he sim convencer a sem razaõ daquelles, que reconhecendo-a por filha legitima nas palavras, a querem fazer bastarda na Orthografia. Huns dizem que se naõ use de ct nas palavras, como em Acto, Activo, Aspecto, Convicto, Ficto, Dicto, Delicto, Victoria &c. outros, [8] que senaõ escreva pt, como em Assumpto, Prompto &c. outros, que he escusado o mn, como Condemnar, damno &c. outros, que se lance fora o ch, com som de q, ou c sem plica, nem aspiraçaõ, e que se naõ diga Charo, Charissimo, Charidade, Choro de Igreja &c. mas Caro, Carîssimo, Caridade, Coro &c. E finalmente sem distinçaõ alguma reprovaõ muitas letras nas palavras traduzidas do latim, dizendo, que com ellas naõ escrevemos como pronunciamos. E para responder logo a esta sua razaõ, antes de lhe mostrar os inconvenientes, e absurdos que se seguem do que notaõ, perguntase:

Se escreve como pronuncia, quem imita a Orthografia latina?

19 Respondo que he falso dizer, que nas palavras, que ficaõ a cima naõ escrevem como pronunciaõ os que sabem pronunciar; porque os que sabem pronunciar, naõ exprimem tanto as consoantes, de que se compõem a palavra, que as façaõ soar tanto, ou mais que as vogaes; mas la as tocaõ taõ levemente que juntas com as vogaes fazem hum som muyto proprio, e indicativo da palavra, que pronunciaõ: v. g: nesta palavra Victoria, naõ se pronuncia o c com tanta força, que sôe por si so separado do t, deste modo Vic-toria, que faz este som Viq-toria: mas pronunciase com o c taõ unido com o t, que senaõ dá espaço no som entre hum, e outro, como se disseramos Vi-ctoria. O mesmo he em todas as mais que se escrevem com ct. E quem diz o contrario he porque so sabe pronunciar material, e rusticamente sem arte, nem sciencia. E por isso naõ deixa de escrever como pronuncia, quem sabe pronunciar para escrever.
20 O mesmo que digo da pronunciaçaõ do ct, se observa na pronunciaçaõ do mn, e do pt, nas palavras, em que se escrevem; porque na palavra Damno, naõ pronunciamos o m separado do n, exprimindo o som total do m: naõ dizemos Dam-no, que sôa como Dameno, mas dizemos Damno, ferindo levissimamente o m junto com o n, que sôa como Da-mno. Na palavra Prompto, Promptidaõ, naõ pronunciamos o p com som separado do t, e carregando nelle, naõ dizemos Prom-p-to, que sôa como Prompeto: mas dizemos Prompto, ferindo taõ levemente o p, que sôa juntamente com o t, como se disseramos Prom-pto. [9]
21 Aonde se conhece melhor esta recta pronunciaçaõ, e se mostra o que fica dito, he nas palavras Digno, e Dignidade, nas quaes sem muyta especulaçaõ se está vendo, ou ouvindo, que o g naõ se pronuncia com som separado do n; e sôa taõ levemente, que algum tanto se percebe, sem o exprimirmos com todo o som de g; porque naõ dizemos Di-g-nus, que entaõ soaria como Digenus: mas dizemos Dignus, que sôa como se disseramos Di-gnus.
22 O certo he, que lendo nos Auctores as palavras Acto, Dicto, Digno, Damno, Prompto &c. como vemos as letras, com que escreveraõ, mas naõ ouvimos o som, com que pronunciaraõ, huns lem, e pronunciaõ como sabios, louvaõ, e imitaõ: outros lem, e pronunciaõ como nescios, estranhaõ, e reprovaõ. E menos mal he, que estes aprendaõ a pronunciar com acerto para escreverem sem erro, do que lançarmos fora as regras da Orthografia, para nós escrevermos como elles pronunciaõ; porque daqui se seguem estes inconvenientes.

Inconvenientes, que se seguem, de naõ imitar a Orthografia latina.

23 O primeiro inconveniente, que se segue de naõ imitar a Orthografia latina nas palavras traduzidas do latim em Portuguez, ou para melhor dizer, nas palavras latinas aportuguezadas, he a confusaõ, equivocaçaõ, e duvida que fazem com outras muito diversas na significaçaõ; porque ficaõ com a mesma identidade das letras, com que se escrevem; como estas, e outras innumeraveis: Dicta, he cousa que se disse, e se lhe tirarmos o c, fica Dita equivocada com Dita, que he o mesmo que sorte, ou fortuna. Facto he o feito, ou cousa feita; e se lhe tirarmos o c fica Fato equivocado com Fato cousa de vestir. Ficto, he o mesmo que fingido; e tirando o c, fica equivocado com Fito. Pacto he o concerto, e sem c fica Pato ave.
24 Signo com g, he qualquer signo celeste, ou o sinal: e tirando-lhe o g, fica Sino, o sino de tocar. Invicto, quer dizer naõ vencido, ou invencivel; e tirando-lhe o c fica Invito, que significa contra vontade, violentado, ou constrangido. E destas outras innumeraveis, que podem fazer similhantes duvidas.
25 O segundo inconveniente he, que se tirarmos ás palavras as [10] letras, que indicaõ a sua latinidade, he lançar fora as analogias, e etymologias de cada huma; porque naõ lhe fica por onde conhecermos donde foraõ traduzidas, ou derivadas para sabermos a sua genuina significaçaõ. Se escrevermos Convito em lugar de Convicto, quem dirá o que significa? porque Convito he huma palavra composta da preposiçaõ Con, e de Vito; e Vito nem he palavra latina, nem Portugueza, e por isso nada significa. E se escrevermos Convicto, logo vemos que tem analogîa com a palavra latina Convictus, ou que he a mesma aportuguezada; e por isso huma, e outra significaõ o Convencido.
26 Nós dizemos Cultura, e Cultôr. E se quem escrever Escultura, e Escultor, para significar o officio, e official de esculpir, deixará em duvida o que quer dizer; e se escrever Esculptura e Esculptor, qualquer latino saberá o que significaõ. Na nossa lingua ha a palavra Geito, e se alguem escrever Sogeito, quem dirá, que analogia, ou similhança tem esta palavra com alguma latina? Mas se escrever Subjeito, ou Sujeito, diraõ os que sabem, que nasce de Subjectus, e que está bem traduzida para o seu significado; e naõ Sogeito, onde se naõ ve letra alguma de Subjectus, senaõ o s, e huma so letra naõ basta para fazer analogia, como ja adverti, e ainda direi em seu lugar.
27 Nem me digaõ, que daqui se segue, que devemos tambem escrever Docto, Doctrina, e Pecto &c. Porque no latim se diz Doctus, Doctrina, Pectus. Respondo, que nestas, e outras similhantes prevaleceo o uso universal, e com fundamento; porque a mudança de huma letra nas traduçoens, muitas vezes he necessaria, ou para facilitar a pronunciaçaõ, ou para a fazer mais suave, ou mais natural. E isto usáraõ tambem os latinos a cada passo na traduçaõ lingua grega; porque de Bixos verteraõ Buxus: de Triambos, Triumphus, e outras muitas. Nós mesmos dizemos de Aprilis Abril: de Capillus Cabello: de Capra Cabra; e de Musca Mosca &c. Mas nestas, e outras versoens ainda ficaõ bastantes letras para a sua analogia; e quando naõ ficassem, naõ havia necessidade para a imitaçaõ, porque as palavras traduzidas nem deixaõ duvida no que significaõ, nem se equivocaõ com outras. Eu naõ digo, que aportuguezemos todas as palavras latinas, que naõ saõ necessarias; persuado, que na quellas, que cada dia vaõ passando para a nossa lingua com a mesma significaçaõ, naõ desprezemos a Orthografia latina, porque. [11]
28 O terceiro inconveniente he, que se naõ observarmos a Orthografia latina nas palavras que saõ de sua natureza latinas, e passaõ para a lingua Portugueza, escreveremos palavras, que nem seraõ Portuguezas, nem latinas, e sahirá huma terceira lingua, que mais parecerá aborto deforme, que filha perfeita da latinidade; qual he a língua, que o vulgo ignorante erradamente pronuncia, e escreve; como largamente mostrarei nos erros, e emendas das palavras no fim da Orthografia. E quando se naõ siga este inconveniente, seguirseha o escrever, e pronunciar cada hum como quizer, sem ter regra certa que observar. Eu bem sei, que naõ ha regras certas, e infalliveis na Orthografia da nossa língua; porque he muita a variedade no escrever; mas,
29 Se perguntarmos aos que escrevéraõ Leziras, Lesirias, Lysirias, Lisiras: Pintacilgo, Pintasilgo, Pintasirgo, Pintaxilgo, Porcelana, Porçolana, Porselana &c. a causa, porque naõ assentáraõ em vocabulo certo? Responderâõ, porque naõ acháraõ nem analogia, nem etymologia de taes palavras para as derivarem, ou traduzirem; e estas mesmas nos faltaõ em muitas, que saõ palavras meramente portuguezas: logo se fugirmos da Orthografia latina, quem duvida, que nos faltarám as mesmas analogias, e etymologias, naõ so em muitas, mas em todas as palavras, que se tem vertido, vertem, e verterâõ da lingua latina na Portugueza.

Parecer do Auctor, e disposiçaõ da obra.

30 Á vista destas difficuldades, pareceme, que nenhum Auctor prudente se animaria a similhante obra, sem recear a censura dos apaixonados: huns pela pronunciaçaõ patria; outros pelo costume, e habito de escreverem; outros por naõ terem cabedáes para a fazerem, e por isso notaõ; porque para notar hum çapateiro basta, e para satisfazer naõ basta hum Vieyra.
31 Eu porem, naõ por temor da censura, mas pelo juizo, que formo da nossa lingua, digo que naõ podemos dar regras certas, e infalliveis para a sua Orthografia; porque como cada dia se vay apurando, e aperfeiçoando mais, e este mais todo he da lingua latina mãy taõ rica, que lhe deixou huma herança perpetua, naõ podemos dar agora regras certas, para o que ainda ha de ser. Mas o que posso segurar he, que todos os que quizerem imitar esta Orthografia, [12] que pertendo expôr, escreverám com acerto a nossa lingua no auge, em que está, pronunciarám sem erro, e resolveram as dúvidas; porque disponho a obra da maneyra seguinte.
32 Primeyramente ensinarey o uso dos accentos, ou tons com os seos sinaes, para o acerto da pronunciaçaõ nas palavras, que podem ter duvida. E sendo este o fim por onde acabaõ as mais Orthografias, eu principiarei por elle, por naõ estar repetindo por palavras a pronunciaçaõ, que se ensina por tons.
33 Em segundo lugar se explica, que cousa he Orthografia, e as suas regras geraes. E passando ás letras em particular, diremos, que pronunciaçaõ tem cada huma; e em cada huma poremos pelo Abecedario todas as palavras, que tiverem duvida na sua Orthografia, as que podem equivocarse com outras; e todas as mais que imitaõ a Orthografia latina. Com a mesma ordem iraõ em cada letra, todas as palavras, que se escrevem com letra dobrada. Daremos as regras da divisaõ das palavras, quando naõ cabem inteiras no fim da regra. Seguirsehaõ as regras da pontuaçaõ, para a divisaõ das oraçoens com virgula, ponto, e virgola, dous pontos &c. Daremos noticia de alguns breves, de que usáraõ os antigos, e ensinaremos todos os modos de contar por Calendas, Nonas, e Idos, e em Latim.
34 Finalmente, como de saber pronunciar bem, nasce o acerto de bem escrever, acabará a obra com os erros da pronunciaçaõ do vulgo, e as suas emendas pelo alfabéto em cada letra. E será hum breve compendio, ou huma grande Arte, que sem trabalho, nem mais regras, que a liçaõ ensinará a todos a fallar sem erro, e a escrever com acerto a mayor parte da lingua Portugueza. E como nas escolas de ler, e escrever andaõ introduzidos muitos erros, que ficam perpetuos pela criaçaõ, poremos huma breve instrucçaõ para os mestres das escolas ensinarem com mais acerto, e menos trabalho.